Transferência do Treino para a Performance

RESUMO

A transferência do treino para a performance desportiva é um assunto importante para os Strength and Conditioning Coaches, mas há muitos fatores a serem considerados. Existem elementos genéticos, anatómicos e fisiológicos que podem influenciar o potencial de um atleta para um determinado desporto, mas o treino também pode ser um forte influente. A força é uma dessas capacidades e pode ser correlacionada com a performance desportiva. Os treinos técnicos e específicos também são importantes para a transferência do treino para a performance. Além disso, é importante lembrar que cada atleta é único e o que funciona para um pode não funcionar para outro. É preciso considerar todos esses fatores ao planear o treino de um atleta.

PALAVRAS-CHAVE

Transferência do Treino, Performance, Força


A transferência do treino para a performance desportiva parece ser o pote de ouro no final do arco-íris, uma vez que todos os Strength and Conditioning Coachs procuram esta transferência. No entanto, há vários aspetos a ter em conta nesta temática. Neste sentido, vamos desconstruir esta temática da transferência do treino, de forma faseada.

SERÁ QUE SE O USAIN BOLT TREINASSE DE FORMA DIFERENTE DEIXARIA DE SER CAMPEÃO DO MUNDO?

Esta questão, normalmente, gera uma grande discussão. Vamos observar a questão pelo lado racional. Qual é o propósito desta questão? O objetivo será percebermos que há parâmetros que não vamos poder mudar, e que talvez o treino não seja tão importante quanto nós gostaríamos que fosse. Vamos dar um exemplo, Miyake e colegas [1] demonstraram que o braço do momento dos extensores do joelho é maior em sprinters do que em non-sprinters. Isto significa que existe uma vantagem mecânica para a performance no sprint. Kjendlie and Stallman [2] demonstraram que a morfologia do corpo humano pode influenciar a performance na natação. Por exemplo, o arrasto é influenciado pelo tamanho do corpo, pelo que quanto maior o nadador menor será a resistência de onda, para a mesma velocidade, logo um nadador alto terá maior potencial para atingir uma velocidade máxima maior. Assim sendo, existem fatores genéticos, anatómicos e fisiológicos que nos podem favorecer para um determinado desporto. Todos estes fatores são dimensões que não conseguimos, obviamente, influenciar.


QUE FATORES PODEM EFETIVAMENTE SER INFLUENCIADOS POR NÓS?

Para compreendermos efetivamente toda esta temática temos que, tal como disse Bondarchuk [3] “We will free ourselves from naive and abstract types of conclusions: as for example, to throw the hammer such and such distance it is necessary to do the barbell squat a certain number of time, the power clean a certain number of times and so on. The time of primitiveness has already passed and the time has come to look at the problem all the more seriously.”.

“MAY THE FORCE BE WITH YOU” - Master Yoda in Star Wars

Como eu costumo dizer, George Lucas tinha razão quando criou o Star Wars. Mas, quão importante será a força? De facto, existe uma correlação entre o nosso nível de força e as suas diferentes expressões e a performance desportiva.  Suchomel e colaboradores [4], Lum e colaboradores [5], De Witt e colaboradores [6] demonstraram haver uma correlação entre várias formas da expressão de força dinâmica com a força isométrica que, por sua vez, tem relação com várias ações da performance desportiva. De seguida apresenta-se uma imagem adaptada que ilustra esta questão.

Suchomel e colaboradores [4] caracterizaram o nível da força em 3 estágios diferentes. Esses estágios são: [1] “Défice de Força”, [2] “Associação de Força” e [3] “Força de Reserva”.

Isto significa que um atleta, numa fase inicial, vai apresentar défices de força, ou seja, níveis de força demasiado baixos, onde pode, ou não, existir a possibilidade de uma transferência de força para a performance. Na fase seguinte, “Associação de Força”, será a fase onde existe maior relação entre os aumentos dos níveis de força com a possível melhoria da performance, ou seja, nesta fase é importante implementar um bom treino de força, simples e sólido. Será também nesta fase que irão ocorrer as adaptações neurais mais importantes. A última fase, “Força de Reserva”, será onde o aumento de força estará mais dependente da aprendizagem técnica do movimento em questão, do que propriamente das adaptações neurais ou estruturais. Isto é, deixamos de ter uma transferência do aumento do nível de força para um possível aumento de performance, o que sugere a importância da avaliação de outro tipo de competências e caraterísticas, e a utilização de estratégias de treino mais avançadas.

A capacidade de gerar tensão, ou seja, a força de um atleta apresenta alguma relação com a performance desportiva. No entanto, não se trata de ser o atleta mais forte possível, mas sim ser o atleta que atinge um determinado nível de força e, a partir desse nível, procurar a forma de manifestação de força que mais se assemelha ao desporto em questão. É importante realçar que o mais importante será promover a resiliência no atleta, associado a uma menor propensão a contrair uma lesão, pois só assim o atleta estará mais apto a competir durante toda a sua época e carreira desportiva.


CORRESPONDÊNCIA DINÂMICA

O termo correspondência dinâmica foi introduzido há algumas décadas por Verkhoshansky and Siff [7], na primeira edição do seu trabalho, em 1993. Este termo é, por sua vez, genérico e corresponde à transferência direta e possível dos programas de treino para a performance atlética (não performance desportiva). Ressalva-se que é possível aumentar-se a capacidade atlética de um atleta, no entanto é extremamente difícil afirmar-se que se consegue aumentar a performance desportiva, pois esta depende de imensos fatores associados como, por exemplo, a nutrição, o sono, o descanso, a técnica, ou a tática.

         Desta forma, Verkhoshansky and Siff [7] discutem alguns fatores essenciais que devem ser considerados quando se pretende maximizar a correspondência dinâmica de um exercício. Estes fatores são determinantes para a tomada de decisão no momento de colocar um exercício no treino de um atleta. Sendo eles:

·      Amplitude/ Direção do movimento;

·      Regime de ação muscular;

·      Dinâmica do esforço;

·      Região de produção de força acentuada;

·      Taxa de produção de força.

 

Estes 5 fatores devem sempre ser considerados no momento da nossa prescrição, recordando que nem sempre se pode conseguir corresponder aos 5 num só exercício. Mas, quanto mais fatores incluídos, maior será a POSSIBILIDADE de se atingir a transferência.

Com isto, pode-se ainda relacionar a pirâmide de classificação de exercício de Anatoly Bondarchuk. Esta pirâmide classifica os exercícios com base na sua especificidade, e se uma análise detalhada permite ter ligação com os fatores abordados na correspondência dinâmica.

Extraído de: http://ucoach.com/assets/uploads/files/UKA_Exercise_Classification_Hierarchy_V1.0.pdf

Iniciando a base da pirâmide com exercícios gerais preparatórios, isto é, exercícios totalmente diferentes do desporto em questão, até mesmo em termos de sistemas energéticos. De seguida aparecem os exercícios preparatórios específicos, que não imitam o movimento competitivo, no entanto correspondem ao sistema energético utilizado e utilizam os principais grupos musculares do desporto. Exercícios de desenvolvimento específicos são exercícios que podem contemplar parte do movimento do desporto, mas nunca na sua totalidade, e apresentam grande especificidade no sistema energético, na ação muscular e na taxa de produção de força. Por fim, o exercício competitivo corresponde, essencialmente, à competição em si, ou à prática do desporto em si.

         É de relembrar que o histórico de Bondarchuk e Verkhoshansky é essencialmente relacionado com desportos individuais, que em termos competitivos e de calendário competitivo são bem diferentes de desportos coletivos.

         Qual a problemática de toda esta seção? A constante tentativa de imitar o gesto desportivo na sua integra com sobrecarga, que pode levar a uma transferência negativa. Ou seja, em vez de estarmos a influênciar o atleta de forma positiva, estamos efetivamente a diminuir a sua performance desportiva apesar de, muitas vezes, a percepção do atleta e do treinador é que a sua performance está a melhorar! Por exemplo Montoya, Brown (8)demonstraram que realizar o aquecimento com um taco de basebol mais leve poderia potenciar a velocidade com o taco normal, já o realizar o aquecimento com o taco mais pesado, poderia diminuir a velocidade com o taco normal. Southard and Groomer (9)analisaram a velocidade do taco e o padrão de movimento de swing, compararam 3 condições – Taco standard, taco com peso adicional e taco mais leve. Foi descoberto o taco com peso adicional não só alterava significativamente o gesto ténico, assim como após o aquecimento a velocidade do movimento era significativamente mais baixa! Portante, muita atenção quando colocamos sobrecarga nos gestos técnicos desportivos!


FRANS BOSH - STRENGTH AND COORDINATION

A temática abordada até ao momento foi, fundamentalmente, relacionada com a aprendizagem que temos sobre o exercício, que corresponde a uma aprendizagem MECÂNICA. Assim, a nossa visão sobre aquilo que é, ou que deve ser, o exercício para a performance está enviesada para o registo mecânico. Isto não está necessariamente errado, é até uma excelente abordagem e deve ser implementada em todas as possibilidades.

         Frans Bosch veio proporcionar uma perspectiva ligeiramente diferente sobre o treino de força e a performance desportiva. Bosch and Cook (10) abordaram, no seu livro, o treino de força como sendo o treino de coordenação muscular. Este autor permitiu que o leque de entendimento sobre o que deve ser o treino de força direcionado à transferência para a performance desportiva ficasse amplamente aumentado.

         Esta perspectiva está relacionada com o conceito da Aprendizagem Motora. Dado que a nossa visão é, quase sempre, enviesada pela perspectiva mecânica, para uma compreensão mais detalhada desta visão será necessário compreendermos primeiramente outros conceitos[1].

         Frans Bosch definiu vários fatores importantes para a transferência do treino para a performance desportiva. Sendo eles:

[1] Por motivos de extensão do texto, esta compreensão destes conceitos será abordada num outro documento.

·      Propriedades motoras (ação dos membros; ação muscular (coordenação intra/inter);

·      Carga dominante (stress neuromuscular; sistemas energéticos);

·      Propriedades sensoriais (informação sensorial; ambiente; corpo; ciclo de perceção ação);

·      Controlo dominante (nível de controlo: intenção para a ação);

·      Intenção (outcome do movimento).

O autor dividiu estes fatores por “camadas”, com a sugestão de que a progressão no nosso trabalho deve seguir essas mesmas “camadas”.

Uma reflexão entre esta ordenação de fatores e a pirâmide de exercícios de Bondarchuk, juntamente com os 5 fatores abordados por Verkhoshansky, conseguimos encontrar um elo de ligação. Desta forma, na minha opinião, estes fatores e dimensões interligam-se e partilham a mesma visão sobre a transferência do treino para a performance desportiva, a grande diferença está na PERSPECTIVA!

Assim, podemos concluir que estamos perante diferentes perspetivas para a mesma temática. O mais importante, em jeito de conclusão, é existir a capacidade de compreender cada uma das perspetivas e encararmos as mesmas como novas e mais “ferramentas” na nossa “caixa de ferramentas”. Tal como referiu Bondarchuk [3], “Before you even think about having a conversation about transfer, you better understand your athlete first.”, logo, mais importante que a transferência é sim compreendermos o atleta que temos diante de nós.


BIBLIOGRAFIA

[1].         Miyake Y, Suga T, Otsuka M, Tanaka T, Misaki J, Kudo S, et al. The knee extensor moment arm is associated with performance in male sprinters. Eur J Appl Physiol. 2017;117(3):533-9.

[2].         Kjendlie P-L, Stallman R. Morphology and swimming peformance. 2011. p. 203-21.

[3].         Bondarchuk AP. Transfer of Training in Sports: Volume One: Ultimate Athlete Concepts; 2007.

[4].         Suchomel TJ, Nimphius S, Stone MH. The Importance of Muscular Strength in Athletic Performance. Sports Med. 2016;46(10):1419-49.

[5].         Lum D, Haff G, Barbosa T. The Relationship between Isometric Force-Time Characteristics and Dynamic Performance: A Systematic Review. Sports. 2020;8:63.

[6].         De Witt JK, English KL, Crowell JB, Kalogera KL, Guilliams ME, Nieschwitz BE, et al. Isometric Midthigh Pull Reliability and Relationship to Deadlift One Repetition Maximum. J Strength Cond Res. 2018;32(2):528-33.

[7].         Verkhoshansky Y, Siff MC. Supertraining: Verkhoshansky SSTM Moscau, Russia; 2009.

[8].         Montoya BS, Brown LE, Coburn JW, Zinder SM. Effect of warm-up with different weighted bats on normal baseball bat velocity. J Strength Cond Res. 2009;23(5):1566-9.

[9].         Southard D, Groomer L. Warm-up with baseball bats of varying moments of inertia: effect on bat velocity and swing pattern. Res Q Exerc Sport. 2003;74(3):270-6.

[10].       Bosch F, Cook K. Strength training and coordination: an integrative approach: 2010 Publishers Rotterdam; 2015.

Rafael Peixoto

- Mestre em ciências do desporto (UTAD 2014);

- Pós-Graduação em reabilitação física (manz lusófona 2014);

- Pós-Graduação em Reabilitação e Medicina do Exercício (FMUP 2021);

- Doutorando em Ciências do Desporto (UTAD);

- Personal Trainer desde 2014;

- Preparador e Readaptador físico nos u23 Famalicão;

- Coordenador Técnico MyoClinic.

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