Desporto: Medicamento Eficaz para as Crianças?

RESUMO

No passado, as crianças iniciavam mais cedo a construção das bases fundamentais do controlo motor. O estilo de vida que tinham permitia-lhes brincar na rua, nos parques e/ou nos jardins de casa. Rebolar, correr, saltar e rastejar faziam parte do seu dia-a-dia e era repetido incessantemente, pelo que, o desenvolvimento das capacidades físicas acontecia naturalmente através das brincadeiras e jogos entre elas sem a pressão de um dia virem a ser atletas profissionais.

PALAVRAS CHAVE:

Desporto, Crianças, Saúde, Atividade Física, Especialização Precoce, Obesidade


“REPETIÇÃO LEVA À PERFEIÇÃO”

Inicio esta reflexão com um ligeiro desvio narrativo que levará a nossa atenção para o espectro desportivo.

No livro “Outliers”, Malcom Gladwell afirma que são necessárias 10000 horas de treino de uma modalidade para se atingir o sucesso nessa mesma modalidade. [1] Esta premissa intrinsecamente deduz que o atleta deve iniciar o processo de especialização muito cedo. No entanto, a especialização precoce pode ter riscos associados como o aumento da taxa de lesões, do stress psicológico e da desistência precoce do desporto. [2]

Esta questão dos atletas se especializarem cedo numa modalidade tem gerado muito debate e opiniões diversas. Visto que ainda existem poucos dados que comprovem as diferentes teorias, a Academia Americana de Pediatria recomenda uma abordagem individualizada para cada criança. [3]

Na ginástica rítmica, ao contrário do que seria expectável, a especialização precoce dos atletas não lhes trouxe maiores hipóteses de sucesso, verificando-se que este foi mais associado ao prazer pela modalidade. [4] Adicionalmente, um estudo que envolveu 1558 atletas olímpicos alemães demonstrou que os atletas de elite começaram o treino intenso e a competição na sua modalidade mais tarde do que os de quase elite (11,4 vs 10,2 anos e 13,1 vs 12,0 anos, respetivamente). Além disso, quando comparada a percentagem de atletas que praticaram mais de uma modalidade, esta foi superior nos atletas de elite do que nos atletas de quase elite (64% vs 50%). [5]

Desta forma, para ajudar as crianças e adolescentes a terem sucesso desportivo, recomendo que elas devam ser acompanhadas por profissionais licenciados em desporto e que estes analisem cada atleta individualmente, optando por uma abordagem consonante com o Colégio Americano de Medicina Desportiva (ACSM) que recomenda que as crianças e adolescentes devam evitar dedicar todo o tempo de treino ao desenvolvimento de habilidades específicas da modalidade que praticam, devendo incluir exercícios que promovam melhoria das capacidades físicas como a força, resistência e flexibilidade. [6]


PARADIGMA ACTUAL

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que as crianças acumulem diariamente 60 minutos de atividade física de intensidade moderada a intensa, associada a treino de força e/ou aeróbio de intensidade vigorosa três vezes por semana. [7]

Se por um lado a bibliografia e o consenso entre a comunidade científica relativamente aos benefícios a longo prazo da atividade física para a saúde e bem-estar das crianças e adolescentes aumentam, por outro lado, estes encontram-se cada vez menos aptos e capazes fisicamente, assim como cada vez mais obesos. [8] [9]

Esta situação tem-se agravado nos últimos anos, principalmente devido à Pandemia Covid-19 que levou a mudanças na quantidade e qualidade da atividade física, no comportamento sedentário e no sono das crianças e dos jovens. [10] [11]


DEIXEM AS CRIANÇAS JOGAR

A atividade física nas crianças tem vindo a diminuir e os comportamentos sedentários têm vindo a aumentar. [12]

Há cada vez mais evidências que sugerem que, independentemente dos níveis de atividade física, os comportamentos sedentários estão associados ao aumento do risco de doenças cardiometabólicas, mortalidade por todas as causas e uma variedade de problemas fisiológicos e psicológicos. [13]

Pelo bem das crianças, elas precisam de ser mais ativas novamente. A criação de estratégias multidisciplinares que envolvam a família e a comunidade é importante para a obtenção de resultados a longo-prazo, bem como o envolvimento do governo no desenvolvimento de políticas que favoreçam o acesso das crianças a dietas saudáveis e a programas de atividade física. [14] Os pais podem assumir um papel importante na criação de estratégias para tornar a vida das crianças mais ativa e saudável. Bem sei que os tempos mudaram e a organização do dia-a-dia está cada vez mais complicada, tornando difícil a simples tarefa de ir brincar com os filhos para os parques. Como alternativa, sabendo que o acesso a atividades desportivas não mudou e o número de clubes desportivos em Portugal até aumentou desde 1996 até 2020 ( 10328 vs 11066 respetivamente), como ilustra a figura 1, a prática de atividades desportivas organizadas é uma solução, visto que traz bastantes benefícios para as crianças:

  • Promove uma vida saudável com ênfase na construção de habilidades, de força e de resistência;

  • Melhora a saúde mental e a capacidade de concentração;

  • Ensina, de forma segura, habilidades importantes para a vida como o auto-respeito e respeito pelos outros;

  • Ensina importantes lições de vida sobre ganhar e perder;

  • Fornece modelos positivos para treinadores, pais, organizadores e outros atletas;

  • Enfatiza a forma física e a diversão porque cada jogador tem o mesmo tempo de jogo;

  • Oferece uma ótima introdução ao desporto e ao exercício num ambiente não ameaçador, o que pode motivar a participação, o crescimento e o envolvimento em atividade física e noutros desportos. [15][16]

Figura 1 - PORDATA (2022). Clubes: total e por algumas federações desportivas


BIBLIOGRAFIA

[1] Gladwell M. (2008) Outliers. 1ª Edição. Little, Brown and Company Y.

[2] Jayanthi N, Pinkham C, Dugas L, Patrick B, Labella C. Sports specialization in young athletes: evidence-based recommendations. Sports Health. 2013 May;5(3):251-7. doi: 10.1177/1941738112464626. PMID: 24427397; PMCID: PMC3658407.

[3] Intensive training and sports specialization in young athletes. American Academy of Pediatrics. Committee on Sports Medicine and Fitness. Pediatrics. 2000 Jul;106(1 Pt 1):154-7. PMID: 10878168.

[4] Hume PA, Hopkins WG, Robinson DM, Robinson SM, Hollings SC. Predictors of attainment in rhythmic sportive gymnastics. J Sports Med Phys Fitness.1994;33(4):367-377.

[5] Gullich A , Emrich E . Evaluation of the support of young athletes in the elite sports system . Eur J Sport Soc. 2006 ; 3 : 85 - 108 .

[6] American College of Sports Medicine . The prevention of sport injuries of children and adolescents . Med Sci Sport . 1993 ; 25 ( 8 ): 1 - 7 .

[7] WHO Guidelines on Physical Activity and Sedentary Behaviour. 2020. https://www.who.int/publications/i/item/9789240015128. Accessed December 12, 2022.

[8] Poitras VJ, Gray CE, Borghese MM, et al. Systematic review of the relationships between objectively measured physical activity and health indicators in school-aged children and youth. Appl Physiol Nutr Metab. 2016;41(6 suppl 3):S197–S239. doi:10.1139/apnm-2015-0663

[9] Morrison, Shawnda. (2022). Moving in a hotter world: Maintaining adequate childhood fitness as a climate change countermeasure. Temperature. 1-19. 10.1080/23328940.2022.2102375.  

[10] Derek C. Paterson, Katelynn Ramage, Sarah A. Moore, Negin Riazi, Mark S. Tremblay, Guy Faulkner, Exploring the impact of COVID-19 on the movement behaviors of children and youth: A scoping review of evidence after the first year, Journal of Sport and Health Science, Volume 10, Issue 6, 2021,  

[11] Stockwell S, Trott M, Tully M, et alChanges in physical activity and sedentary behaviours from before to during the COVID-19 pandemic lockdown: a systematic reviewBMJ Open Sport & Exercise Medicine 2021;7:e000960. doi: 10.1136/bmjsem-2020-000960

[12] Schwarzfischer P, Gruszfeld D, Stolarczyk A, Ferre N, Escribano J, Rousseaux D, Moretti M, Mariani B, Verduci E, Koletzko B, Grote V. Physical Activity and Sedentary Behavior From 6 to 11 Years. Pediatrics. 2019 Jan;143(1):e20180994. doi: 10.1542/peds.2018-0994. Epub 2018 Dec 3. PMID: 30509928.

[13] Tremblay, M.S., LeBlanc, A.G., Kho, M.E. et al. Systematic review of sedentary behaviour and health indicators in school-aged children and youth. Int J Behav Nutr Phys Act 8, 98 (2011). 

[14] Dabas A, Seth A. Prevention and Management of Childhood Obesity. Indian J Pediatr. 2018 Jul;85(7):546-553. doi: 10.1007/s12098-018-2636-x. Epub 2018 Feb 19. PMID: 29457204.

[15] PORDATA (2022). Clubes: total e por algumas federações desportivas. Acedido em 21 de Dezembro de 2022, em https://www.pordata.pt

[16] Bompa T. e Carrera M. (2015). Conditioning Young Athletes. Human Kinetics

Duarte Nuno

- Co-Founder & Co-CEO Prime Sports;
- Host Prime Education Hub;
- Strength & Conditioning Coach Prime Performance Lab;
- Licenciatura em Ciências do Desporto - Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra (FCDEF-UC)

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